O sol ainda está baixo quando os trabalhadores chegam aos vinhedos de Pantelleria, a pequena ilha italiana situada no Mediterrâneo, entre a Sicília e a Tunísia. Eles escavam covas no solo vulcanico, abrindo espaço para as videiras que crescem isoladas, rente ao chão. A técnica de cultivo em alberello, herdada dos fenícios, não é apenas uma escolha, mas uma necessidade. Conhecida por sua paisagem vulcânica e clima árido, a ilha enfrenta ventos fortes e chuvas escassas, o que torna a agricultura na ilha um desafio. No entanto, seus moradores desenvolveram essa prática ancestral – reconhecida pela Unesco em 2014 como Patrimônio Imaterial da Humanidade – para cultivar a uva zibibbo e permitir a produção do tradicional Passito di Pantelleria, um dos vinhos doces mais icônicos do mundo.
E um dos mais difíceis de se fazer, segundo Pierrick Bourgault, autor de Atlas of Unusual Wines (sem edição em português), que passou anos pesquisando as formas mais inusitadas que os seres humanos desenvolveram para fazer vinho, desde os gelados de Quebec até um Bordeaux feito com gelo seco. Hoje, alguns desses tintos, brancos e doces se tornaram ainda mais valorizados no mercado justamente pelo esforço necessário para colocá-los dentro de uma garrafa. Existem muitos vinhos especiais no mundo, mas poucos representam tão bem o conceito de viticultura heroica quanto o Passito di Pantelleria. O termo, em si, não é novo, mas, na era do storytelling, em que a história por trás importa tanto quanto sua qualidade, ele vem ganhando mais projeção entre enófilos e sommeliers.
Estão nesta categoria essas bebidas produzidas em encostas tão íngremes que nenhuma máquina é capaz de chegar perto; em altitudes tão elevadas que a radiação solar pode queimar folhas e videiras inteiras; em locais de acesso tão difícil que só se chega por pequenas trilhas; ou até em solos formados por pedras de lava. Na Ilha do Pico, uma das nove que compõem o remoto e acidentado arquipélago dos Açores, em Portugal, produtores partiam pedras de basalto à mão, sob o sol escaldante, para plantar suas vinhas. “É uma loucura pensar nisso, mas era a única alternativa”, diz An-tónio Maçanita, um dos mais prolíficos vitivinicultores do pequeno país europeu, que produz ali alguns de seus rótulos mais famosos, feitos com uvas únicas e nativas, como a terrantez do pico e a arinto dos Açores.
A poucos metros do mar, ao longo de um caminho de muros de pedra que acompanha a costa, estão algumas das videiras cultivadas por Maçanita no Lajido da Criação Velha, uma área de cerca de cem hectares, conhecida por sua relevância histórica – também um patrimônio reconhecido pela Unesco. É uma vinha histórica criada ainda no século XV, que permaneceu intacta ao longo dos anos, uma prova da persistência humana em cultivar a bebida mesmo em condições adversas. Os moradores da ilha, a segunda maior dos Açores, desafiaram os ventos atlânticos, a presença constante da maresia e a falta de um solo ideal para criar vinhos que pudessem chamar de seu. “O risco nos Açores é constante: três pessoas da minha equipe já quebraram a perna no terreno rochoso”, explica o enólogo, para quem dificuldade quase sempre significa qualidade.
Maçanita acredita que as melhores vinhas vêm de locais difíceis, onde o esforço humano e a adaptação ao meio fazem parte do processo para uma bebida de quali-dade. “O grande terroir nasce da escassez, não da abundância. Vem da dificuldade, não da facilidade”, diz. “Quando olho para uma vinha e vejo os desafios que ela en-frenta, enxergo sempre um grande vinho.” Talvez por isso ele tenha escolhido produzir seus rótulos nas regiões mais desafiadoras de Portugal. Além dos Açores, também cultiva vinhas no Douro, onde viticultores desafiam a gravidade carregando caixas de 40 quilos de uvas, equilibrando-se entre terraços íngremes, e em Porto Santo, uma pequena Ilha da Madeira, onde é preciso armazenar água da chuva em calcário, pois não há fontes naturais para irrigação. “Ali, se chover no dia de Natal, largamos tudo para bloquear a água e inundar a vinha. Cada gota conta”, diz. “Quando falo com produtores de outras regiões e digo que a minha produção não chega a 1.500 litros por hectare, eles não acreditam, acham que fiquei maluco”, brinca.
De acordo com a Cervim, organização internacional criada para promover e proteger a viticultura heroica, para que uma vinha seja considerada classificada nessa categoria ela deve atender a pelo menos um dos seguintes critérios: inclinação mínima de 30% (o que torna o uso de máquinas impossível), cultivo em terraços ou degraus, localização em pequenas ilhas (onde as condições ambientais e logísticas representam desafios adicionais) e altitude acima de 500 metros, onde o clima influencia diretamente as características das uvas.
Neste último quesito, poucas vinhas são tão desafiadoras quanto as do Jardín Oculto, um projeto criado pelas irmãs bolivianas Mercedes e María José Granier, que decidiram plantar uvas entre macieiras, figueiras e outras árvores no Vale de Cinti, a 2.300 metros de altitude. “Temos um clima de montanha, mas com geadas tardias, sol muito forte que pode até queimar as frutas, granizo e muito vento”, resume María José. Além disso, as videiras sofrem com dois extremos, dependendo da época do ano: secas severas ou inundações repentinas. “São muitas variáveis, e colheitas inteiras podem ser perdidas em um dia”, explica.
Mas antes que alguém pense que é loucura tentar fazer vinhos nessas condições, ela ressalta que há vantagens: “A grande altitude gera uma amplitude térmica sem precedentes. Durante o dia faz muito calor, mas à noite esfria bastante. Isso retarda o amadurecimento e preserva melhor os aromas, criando uma bebida especial.” A propriedade de três hectares produz vinhos em sistema de agrofloresta – “as árvores ajudam a proteger as uvas, tanto do sol quanto de inundações” – com as variantes nativas como negra criolla e a vischoqueña. “Decidimos produzir aqui porque era a melhor forma de contar a história deste lugar”, explica. “Apesar de todas as dificuldades, o que servimos na taça é único e só poderia sair dessas terras.”
A ideia de viticultura heroica também está ligada à preservação, como lembra Maçanita. “Sem valorização, muitas dessas vinhas vão desaparecer. O valor desse trabalho precisa estar na garrafa”, alerta. Por isso, o enólogo acredita que a solução não está apenas na tecnologia. “Precisamos olhar para o passado e entender como essas vinhas sobreviveram por séculos sem irrigação, sem insumos artificiais, apenas com as condições naturais”, afirma. “Esse é o verdadeiro significado da viticultura heroica: plantar onde ninguém mais plantaria e, ainda assim, produzir bebidas que contam essa história, que carregam a dificuldade no próprio sabor”, conclui.