Ilustração: Eduardo Kerges
O Pix precisou de pouco tempo para cair no gosto dos brasileiros. Em apenas quatro anos, passou a ser usado por 155 milhões de pessoas, 76% da população. É hoje o meio de pagamento mais utilizado no país, à frente do cartão de débito (69,196 da população) e do dinheiro (68,9%), segundo pesquisa do Banco Central. Cerca de 15 milhões de empresas já o utilizam para fazer e receber pagamentos.
O sucesso do Pix provocou o fim do Documento de Crédito, conhecido como DOC, instrumento que demorava um dia para completar uma transferência. A Transferência Eletrônica Disponível, o TED, é ainda o preferido das corporações para movimentar grandes volumes de recursos, mas perde terreno para o novo concorrente — em valores transacionados, sua participação caiu de 71% em 2019 para 58% no ano passado.
O Pix é um exemplo de política pública que prospera a despeito do governo de turno. A linha do tempo da ferramenta começa no início da década passada, quando o Banco Central passou a analisar experiências internacionais de pagamento instantâneo. Em 2014, publicou um relatório no qual informava ao mercado financeiro que tinha intenção de oferecer à população instrumentos desse tipo. Em 2016, realizou um workshop no qual apresentou às instituições financeiras diferentes experiências realizadas mundo afora. O desejo de criar um meio de pagamento instantânco, que atendesse às necessidades do mercado brasileiro, começou a virar realidade em 2017, quando foi formado um grupo de trabalho que, com a participação de representantes do setor nnanceiro, alinnavou as caractensucas gerais da futura ferramenta. Em dezembro de 2018 a direção do BC aprovou a construção do novo meio de pagamento.
Todas essas etapas da história do Pix contaram com a colaboração de dezenas de funcionários do Banco Central, mas o empenho de um servidor de fala mansa, vocacionado ao diálogo, foi fundamental para o sucesso da ferramenta. O curitibano Carlos Eduardo Brandt se dedicou desde o início a criar consensos e a driblar resistências em torno da empreitada. Durante a gestação do Pix, no papel de coordenador, conversou diariamente com instituições financeiras, fintechs, representantes da indústria e do varejo, associações de consumidores e outros públicos interessados no assunto.
“Houve dificuldades, mas tudo foi superado com diálogo. As instituições financeiras perceberam, por exemplo, que poderiam perder um pouco num primeiro momento, mas em prol de ganhar mais ali na frente. E, de fato, foi o que aconteceu, com a inclusão de 70 milhões de brasileiros que não participavam do sistema financeiro”, conta Brandt. “Essas pessoas passaram a se relacionar com as instituições financeiras não apenas passando Pix, mas tendo um cartão de débito, fazendo seguros, entre outras coisas. Foi um efeito positivo que muitas instituições não percebiam no início das discussões.” Com o sinal verde dado pela direção do BC, era necessário detalhar o funcionamento da nova ferramenta. Quais padrões a serem seguidos pelos aplicativos das instituições financeiras? Que códigos de identificação os consumidores usariam para transferir dinheiro? Quais mecanismos de segurança protegeriam os usuários? Para resolver questões como essas foi criado em março de 2019 o Fórum Pix, um órgão consultivo que reunia representantes de instituições financeiras, associações de con-sumidores, setores do governo e outros públicos relacionados com meios de pagamento.
Sempre sob a coordenação de Brandt, então chefe adjunto do Departamento de Competição e de Estrutura do Mercado Financeiro do BC, foram criados vários subgrupos dentro do fórum para avançar nas várias questões que surgiam a todo momento. Aos poucos, o instrumento de pagamento ganhava uma cara mais definida.
Com o avanço das discussões, surgiu o desafio de criar um nome para a nova ferramenta, um logotipo e uma estratégia de comunicação. Ainda em 2019, Brandt orientou a equipe de comunicação do BC a desenvolver uma identidade que fosse simples, memorável, que refletisse o papel que a novidade teria nas relações entre a população e os vários agentes do mercado. O nome teria de ser forte, fácil de falar e pronunciável em outros idiomas, como o inglês, requisito necessário para uma futura interação com outros mercados.
“A partir desses subsídios, a equipe de comunicação do BC fez um trabalho fenomenal. A primeira proposta que eles nos apresentaram já trazia o nome e o logo atuais. Gostamos de imediato”, conta Brandt. “O logo traz a imagens de pixels que formam um ‘x’ no meio. Isso remete ao ‘x’ da palavra Pix, cujas duas primeiras letras funcionam como sigla de pagamento ins-tantâneo, na qual se junta o ‘x, que por sua vez passa a ideia de que serve a qualquer forma de pagamento, em várias direções”, conta. As peças foram levadas então à direção do Banco Central, que aprovou rapidamente.
Brandt e colegas do BC fizeram então uma peregrinação a jornais, revistas e emissoras de rádio e TV. Em mais de cinquenta entrevistas, ajudaram a divulgar as características do novo meio de pagamento. Participaram ainda de inúmeros eventos da indústria, do varejo e com representantes dos consumido-res. Para pegar o público das mídias sociais, conversaram com influencers sobre os benefícios da nova ferramenta. Os grandes bancos ajudaram na divulgação com propagandas sobre a nova opção na TV.
Enquanto tudo isso ocorria, o BC desenvolvia o Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI), a plataforma tecnológica na qual todas as operações de Pix são liquidadas. Em 5 de outubro de 2020, começou o cadastramento das chaves Pix pelos usuários. Logo nos primeiros dias, 25 milhões de chaves foram registradas. No início de novembro, em caráter experimental, alguns clientes de bancos puderam fazer operações com Pix. Tudo correu conforme planejado. A ferramenta estreou oficialmente em 16 de novembro. Foram realizadas 1,6 milhão de transações no primeiro dia. Já no primeiro mês de vida, o Pix contava com 50 milhões de usuários.
Um dos efeitos mais impressionantes ocorreu entre a população de baixa renda. Brasileiros que viviam distantes do mundo financeiro, que só conheciam a rotina de lidar com dinheiro de papel e de pagar boletos no caixa do banco, passaram a ter chaves de acesso e a fazer transferências de dinheiro. Estudo do FGVCemif e do Banco Central revela que 90% dos inscritos no Cadastro Único, necessário para o recebimento do Bolsa Famí-lia, possuem hoje chave Pix.
“A ascensão meteórica do Pix ocorreu principalmente por baixar os custos das transações de pequeno valor, feitas principalmente pela população de baixa renda. Antes dessa ferramenta, havia tecnologia, mas não existia um modelo de negócio que barateasse essas transações”, afirma o professor Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV-SP.
Segundo Gonzalez, isso só foi possível porque o Banco Central tomou a iniciativa e assumiu a liderança do projeto. “O papel do BC foi fundamental, porque o mercado sozinho não apresentaria essa solução”, afirma. A autoridade monetária só conseguiu assumir o protagonismo graças à lei 12.865, aprovada em 2013, que deu à instituição o mandato legal para assegurar a eficiência dos meios de pagamento, a partir da inovação e do atendimento às necessidades da população. Sem essa lei, o Pix não existiria.
Para Brandt, o papel de liderança do Banco Central, sempre em diálogo com as instituições do mercado, ajudou no desenvolvimento de um meio de pagamento que atendesse as necessidades específicas do mercado brasileiro. As experiências internacionais analisadas pelo BC deram subsídios, mas estavam distantes do modelo defendido pela autoridade monetária. Boa parte das ferramentas estrangeiras é “fechada”, ou seja, exige que o pagador e o recebedor do valor transferido sejam clientes da mesma instituição, o que vai contra a ideia de inclusão financeira proposta pelo Pix.
Na visão de Brand, a experiência que mais se assemelha ao Pix ocorre na Índia, com a Unified Payment Interface (UPI)- em português, interface de pagamento unificada. Entre as seme-lhanças, os dois sistemas contam com grande adesão da população e contribuem para a inclusão bancária das camadas de baixa renda. As diferenças são inúmeras. Entre elas, o fato de a UPI fazer parte de um sistema descentralizado comandado pela National Payments Corporation of India (NPCI), organização sem fins lucrativos criada pelo Banco Central indiano e bancos locais. Aqui, o usuário pode cadastrar o CPF, o número do telefone ou o email para ter acesso ao Pix. Na Índia, utiliza VPAs, endereços de pagamento virtual.
Brandt — o único brasileiro relacionado pela Bloomberg entre as 50 pessoas que definiram os rumos dos negócios globais em 2021— não gosta quando o chamam de “pai do Pix”. Reconhece a importância que teve na coordenação dos trabalhos de criação e no gerenciamento do novo meio de pagamento, mas reforça que “foi um trabalho de equipe, colaborativo, que contou com a contribuição de várias pessoas do Banco Central. E que se enriqueceu também com ideias e sugestões do mercado.” Hoje, Brandt passa por um momento de transição dentro do Banco Central, onde entrou por concurso público em 2002 — seguindo os passos de seu pai e de seu avô, que também trabalharam na instituição. No ano passado, ele deixou o comando do Fórum Pix e hoje trabalha como consultor sênior da ferramenta. Ele se diz pronto “a assumir desafios diferentes” se necessário.
Na condição de consultor, Brandt continua a participar das discussões sobre as novas funcionalidades da ferramenta. Entre as novidades a serem lançadas nas próximas semanas está o Pix Automático, que funciona como uma espécie de débito programado. Ele colabora também com a criação do Pix Internacional, que permitirá a transferência instantânea de dinheiro para outros países, possibilidade aberta pela nova lei cambial, que entrou em vigor em 2022. As conversas com outros mercados continuam e não há previsão para o início da ferramenta.
Casado, pai de dois filhos, Brandt marcou no calendário um desafio mais imediato. Prepara-se para disputar em junho, no Rio de Janeiro, sua segunda maratona. Correu a primeira em novembro passado em Brasília. Completou os 42,195 quilômetros da prova em 3 horas e 58 minutos.